Pintura


Série I, Pintura sobre Pintura


Série II, A pele como superfície

… pinturas que não são formalmente quadros mas figuras ou, antes, variações de uma única Figura: o corpo humano espalmado, corpo-superfície por toda a extensão do qual circula uma profusão de imagens avulsas. 

(Há um caso, nesta série, em que a figura não é propriamente humana: só que, com a sua cabeça totémica, metade homem e metade ave, procede ao mesmo diagramatismo, é como o corpo-diagrama da arte primitiva ou do «imaginário» dessa arte, daí as imagens que o preenchem, não só a cabeça como as linhas e os traços imitativos da arte rupestre ou ancestral, os sóis…).  

Sousa Dias


Série IV, Rostos

(…) Não por acaso estes quadros quase indecifráveis estão repletos, para um olhar atento, de subtis sugestões de ateliês, de pinceis e de cavaletes, de cenas do género «o pintor no labirinto do seu ateliê e da sua criação».

(…) Não por acaso estes quadros quase indecifráveis estão repletos, para um olhar atento, de subtis sugestões de ateliês, de pinceis e de cavaletes, de cenas do género «o pintor no labirinto do seu ateliê e da sua criação». Significa isto que a pintura de Paula Costa Alves assume a sua própria génese como o seu único objecto, como o seu objecto obsessivo. Pintura, apetece escrever, intransitiva. Uma pintura que não tem tema fora de si, exterior a si. Uma pintura que, portanto, nada quer dizer, nada quer dar a ver, excepto a si mesma como puro desejo de pintura, puro jogo de composição na ordem das linhas e das cores. É por isso que esta pintura tudo faz para trocar as voltas ao olhar e forçar a percepção a renunciar ao exercício de decifração para se converter em simples fruição perceptiva. Daí a característica mais óbvia, mais imediatamente evidente, destes quadros: a sua sobressaturação, pelas cores e pelas linhas, do espaço pictural. É uma pintura «plena», que tem horror ao vácuo, ao espaço vazio. Mesmo os brancos, as manchas de branco, nestes quadros não operam como espaços intervalares ou «sem» cor mas, pelo contrário, como um preenchimento ainda, como uma ocupação do espaço não ocupado pela cor, pelas outras cores. Mas são sobretudo as linhas que aqui contribuem para a absoluta saturação e para a finalidade desta. Se, como dizia Klee, uma linha é um ponto que desatou a passear, aqui as linhas desataram, não só a vagabundear, mas a correr em todas as direcções, a fugir de fazerem contorno, para assim sacudirem de si toda a significatividade. Com efeito, a sobressaturação tem nesta pintura, que por vezes lembra a de Pollock, uma função ou uma intenção precisa. Trata-se sem dúvida de exceder o olhar e a sua vontade de sentido («o que é que isto significa?»), de desterritorializar o olhar, de lhe retirar toda a ancoragem semântica. Isto é: trata-se de curto-circuitar toda a dimensão significante da pintura e de suscitar uma percepção «poética», de fazer os olhos simplesmente ver, tomar consciência do visual como, antes de toda a significação, pura fruição. Daí que as mais das vezes, nestes quadros, as figuras (as formas identificáveis) estejam dispersas no espaço do quadro, como elementos discretos, não nucleares, não referenciais para o olhar. Tudo, nesta pintura, é discreto neste sentido. Não há aqui figuras, ou elementos figurais, que funcionem para o olhar do espectador como pontos de polarização ou centros de significação. Esta é uma pintura absolutamente assignificante, que se recusa a significar, a «fazer sentido», excepto o enigmático sentido que toda a pintura, ou o Acto pictórico, tem enquanto expressão de uma gratuita vontade de arte: livre afirmação de linhas, de cores, de formas, criação de composições sensíveis (cromáticas e figurais) apelando pela sua novidade a um olhar perplexo. A arte de Paula Costa Alves: linhas fragmentárias, inacabadas, que, em vez de fazerem contornos, os desfazem, os impossibilitam. Traços intensos, traços de intensidades, mais do que linhas extensas. Uma dispersão figurativa rebelde à Figura e que, assim, convoca uma apreensão não semântica mas meramente afectiva: os quadros desta pintora não significam, afectam. Tenhamos nós disponibilidade suficiente para ser afectáveis, poeticamente sensíveis ao estranhamento do olhar.  

Sousa Dias